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  • Foto do escritorLili Garcia

Série "O Mecanismo" e o seguro de Erros e Omissões.



“O Mecanismo”, série de José Padilha lançada no Netflix, está causando alvoroço nas redes sociais, nas rodinhas de conversa e até junto à ex-presidente Dilma Roussef.

Não cabe a nós analisar o conteúdo da obra em si, mas sim os possíveis problemas que a produção pode vir a enfrentar através de processos relativos a danos morais contra pessoas retratadas ou telespectadores que se sintam ofendidos pela narrativa.

O seguro de Responsabilidade Civil Erros e Omissões (E&O), visa proteger a produtora de reclamações de terceiros que aleguem terem sofrido difamação, injúria, ou não tenham autorizado o uso de imagem, e isso pode vir tanto de pessoas retratadas na obra, quanto do próprio público. Atualmente as pessoas de forma geral estão muito sensíveis a temas mais delicados, o que aumenta muito a probabilidade de um processo contra a produtora. Bom lembrarmos que o seguro também cobre despesas com profissionais de relações públicas para minorar os danos à imagem da produtora.

Outra situação que pode acontecer é o uso de propriedade intelectual sem autorização. Marcas como Coca-Cola, McDonald's, Apple, ou qualquer outra independentemente do tamanho (pode ser uma lojinha do bairro, por exemplo), eventualmente podem aparecer em primeiro plano ou até mesmo no fundo de uma cena e a simples aparição da marca gerar um processo por uso não autorizado.

Normalmente o mercado tende a achar que o seguro de Erros e Omissões cobre apenas a indenização (caso devida), mas os prejuízos da produtora começam a partir do momento em que ela precisa acionar um advogado para entender a melhor forma de resolver cada caso.

Para esclarecer algumas dúvidas jurídicas sobre as produções audiovisuais, incluindo “O Mecanismo”, convidamos o advogado especialista em propriedade intelectual, Dr. Claudio Lins de Vasconcelos, do escritório Lins de Vasconcelos,

BR|Arte: A série “O Mecanismo” avisa ao telespectador no início de cada episódio, que se trata de uma obra de ficção baseada em fatos reais, contudo, muitos personagens e empresas são facilmente identificáveis em situações comprometedoras. Na opinião do Sr., deve-se pensar em um limite entre a ficção e a realidade que deve ser respeitado a fim de evitar acusações de calúnia?


Advogado Dr. Claudio Lins de Vasconcelos

Claudio Lins: A narrativa da série é ousada, pois trata de temas contemporâneos e polêmicos, que envolvem interesses de muitas pessoas vivas (e poderosas). Então, é lógico que ela carrega em si um grau de risco mais alto que o de uma novela de época, por exemplo, que trate da corrupção nos tempos do Império.

Na minha opinião, contudo, a regra geral é sempre a liberdade de expressão. Ao longo da História, várias obras de ficção foram concebidas como dramatização de uma determinada situação da vida real. Não apenas no audiovisual, mas também na literatura, na música, no teatro e em outras linguagens. A crítica social é parte da arte. Para que se configure calúnia ou difamação, é preciso que o agente declare como verdade aquilo propaga. Se o autor, já de início, declara sua obra como ficção, não há que se falar em calúnia, pois não se pode confundir a representação da coisa com a coisa em si. René Magritte pintou um cachimbo com a legenda “Isto não é um cachimbo”. E não era mesmo. Era a representação de um cachimbo.

É possível que alguém que tenha se sentido caluniado ou de outra forma afetado em sua honra pelo enredo de “O Mecanismo” alegue que sofreu danos de qualquer natureza? Sim, pois qualquer pessoa pode pedir o que quiser na Justiça. Por isso, independentemente da opinião doutrinária de cada um, é sempre recomendável que o produtor se cerque de cuidados, o que inclui uma análise profunda feita por um advogado experiente e também a contratação de um seguro de responsabilidade civil, pois há muita margem para subjetividade nesse tipo de discussão.

Na minha opinião, no entanto, insinuações não são suficientes para constituir difamação ou calúnia e não deveriam, em regra, gerar consequências civis e muito menos criminais. Não gostou da representação que o Padilha fez? Critique-a ou faça sua própria representação.

BR|Arte: Em um determinado momento da série, uma personagem diz que precisa “tomar um Rivotril”. Caso a produção não tenha adquirido os direitos de uso do nome do remédio para o projeto, a simples menção do medicamento ou de qualquer outra marca é passível de processo pelo detentor dos direitos, ainda que não tenha sido usada de forma pejorativa?

CL: Acho que a mera citação de uma marca não deveria gerar indenização a menos que se comprove que tal exposição gerou danos injustificados ao seu titular. Não me parece ser o caso da citação do Rivotril em “O Mecanismo”. Se assim não fosse, Caetano não poderia ter citado a Coca-Cola em “Alegria, Alegria”. Em “Baticum”, Chico Buarque cita Macintosh, JB, Carrefour, Benneton, Warner, Globo, Sanyo... De novo: a regra é a liberdade de expressão artística. É preciso um motivo forte para impedir o exercício de um direito tão básico.

BR|Arte: Um dos assuntos mais comentados têm sido as falas que ocorreram na vida real entre Sergio Machado e Romero Jucá, e na obra foram ditas pelo personagem que interpreta o ex-presidente Lula. No que isso pode implicar juridicamente contra a produtora?

CL: Poder, pode. Mas, na minha opinião, para gerar direto a indenização seria necessário que o texto se pretendesse verídico, documental. Isso, sim, seria falsear fatos. Colocar palavras parecidas com as que o Jucá disse na boca de um personagem parecido com o Lula não é o mesmo que afirmar que Lula efetivamente disse aquilo.

BR|Arte: O Sr. poderia informar como os juízes têm avaliado os casos de danos morais contra a honra e imagem de pessoas retratadas em produções cinematográficas?


Pôster do filme "O que é isso Companheiro?"

CL: A jurisprudência é escassa. Um caso parecido aconteceu no filme “O Que é Isso,

Companheiro?”, de Bruno Barreto. A família de Virgílio Gomes da Silva, um guerrilheiro já falecido, ajuizou ação reparatória de danos morais contra os produtores, alegando que um determinado personagem representava a pessoa falecida, embora disfarçadamente. Na primeira instância, o juiz deferiu o pedido da família, mas em segunda instância o Tribunal de Justiça do RJ reverteu a decisão, acolhendo a tese da produtora.

BR|Arte: Até que ponto uma produtora tem liberdade de retratar uma biografia ou eventos baseados em fatos reais, sem que tenha obtido as autorizações de imagem de todas as pessoas retratadas?

CL: O STF já decidiu, por unanimidade, na famosa Ação Direta de Inconstitucionalidade sobre as “biografias não autorizadas”, que a produção de obras biográficas não depende de autorização prévia. Ainda assim, qualquer um pode buscar indenização a posteriori, ou seja, depois que a obra foi exibida, alegando violação à honra, por exemplo. Aí a margem de subjetividade cresce e fica difícil prever o resultado de uma ação judicial. Por isso, a obtenção de autorização prévia do retratado pode ser uma estratégia interessante de redução de riscos, além de ser uma exigência de muitos exibidores e, em geral, dos editais de financiamento público do audiovisual. Ninguém quer comprar risco.

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